26 de Setembro.



Um ano. Cheio de cor; de amor; de bençãos.
Hoje o dia acordou como há um ano atrás, cheio de sol. A única diferença foi que não choveu por momentos; essa foi uma benção só para nós, com hora marcada, trazida por quem faz o nosso céu. Tenho a certeza.
Hoje, como há um ano atrás, estou serena e feliz. Sinto o coração cheio e, um ano passado, também a barriga. Mais uma benção. 
Agradeço todos os dias. Agradeço-te. 
E trago em mim a esperança de que os anos que vão passando nos tragam sempre estes sorrisos que teimam em não nos largar o ser, mesmo quando o mundo nos troca as voltas.
Obrigada por este ano. 
Mais que tudo.




Do caraças.



Há uma espécie de poesia desempoeirada na métrica que nos rege os dias. 
Aprendemos a contar e a guiar-nos pelos segundos que viram minutos, que viram horas, que viram dias, que viram semanas, que viram meses, que viram anos. Dias há em que andamos à deriva, esquecidos das métricas e donos do nosso próprio tempo, como se este pudesse renovar-se a si mesmo. Noutros, vivemos escravos dos minutos, que trazemos contados na palma da mão, numa correria fugidia contra este tempo que nos salva de si mesmo. 

Há já um tempo que aprendi a contar os sorrisos, e a guiar-me pelo teu – sabes que poderia construir poemas a partir do teu sorriso. Entretanto perdi-me nas contas. Já não sei há quanto tempo foi que me devolveste ao tempo a serenidade de o viver sem nisso pensar. Parece que passou muito tempo; que aí estás desde sempre. 

Sou feliz! Esqueci os calendários e os ciclos lunares. Esqueci as agendas e os relógios. Esqueci que o tempo passa, porque é isso que acontece quando o passamos com ele, e não por ele. Vieste para os meus dias para os tornar maiores, mais cheios, mais plenos. Os teus sorrisos têm o dom de congelar segundos inteirinhos que guardo no estendal da memória, livres, para quando bater saudade poder deixar o meu coração quentinho. Poderia dizer que gostava de resumir tudo o que vivemos neste ano inteiro, e metade de outro. Mas seria mentira. Não queria resumir nada, nunca gostei de resumos! As coisas querem-se inteiras. Quero-te inteiro, a ti, ao nosso amor, ao nosso tempo. Não há segundo que passou de que abdicasse; não há minuto que olvide; não há dia que escolha em prejuízo de outro. Foram segundos e minutos e dias inteiros. Cheios de mim, de ti, de nós – oh, o quanto adoro a 3.ª pessoa do plural! 

Poderia falar de quão especiais são os dias contigo. Mas especial és tu; especial é este amor que partilhamos num mesmo tempo e espaço. Encanta-me essa tua maneira de ser, esse teu jeito tão teu quando estás comigo. Como se o nosso quintal fosse o mundo inteiro e o mundo inteiro pudesse ser nosso, ainda que o não quiséssemos. Cativa-me o teu brilho d’alma que transparece em sorrisos genuínos que me transportam para um caminho de paz interior reconfortante e segura. Sinto-me mais eu quando estou contigo. Sinto-te mais teu quando estás comigo. E não há nada melhor do que sermos apenas, sem pena nenhuma de não termos de tentar ser o que não somos. 

Queria agradecer-te como bênção a um qualquer cosmos superior em que quero acreditar. E agradeço-te todos os dias, ainda que seja baixinho e não me oiças. Agradeço a sorrir, de coração cheio, pelos dias inteiros que vieram porque sim e ficaram sem senão. Dias que me ensinaram que não basta o dicionário para aprender a definição de tempo, de amor, de respeito, de amizade, de paciência, de cumplicidade e companheirismo. Não quero sequer perder tempo a tentar escrevê-los, só quero agora, nesta pausa para recuperar o fôlego de gratidão, que leias nos meus olhos todos os capítulos que por nós, e com calma, foram sido escritos, e não ditados, nestes dias que vivemos. Só quero agora, ler nos teus olhos esta paz e amor que me enche por dentro e me segura por fora, e saber com a certeza própria da vida incerta que é o suficiente para continuarmos a escrever com tempo como o Eça, sem resumos, ora essa, as estórias dos nossos dias partilhados que mais não são que o maior tesouro que alguém pode levar desta vida. 

Obrigada, pelos dias que dividimos. Por inteiro, sem metades. 


* Para a P. e o N.; pelo seu amor por inteiro.
** Para ti, porque está a ser 'do caraças. 

Ódios de estimação.

Uma vez por calendário, sem qualquer clemência, o tempo pára nos primeiros dias de Fevereiro. Para ser rigorosa, não posso deixar de notar que tudo começa uns dias antes, mais ou menos quando Janeiro começa a chegar a meio.

Há qualquer coisa cá dentro que dispara a ansiedade e a tristeza da saudade que se torna latejante e atinge níveis de dor apenas por um sopro leve suportáveis.

Com insolência sobre a pouca memória não selectiva que me resta, voltam frescas as memórias desses dias que algures na minha mente se congelaram com ímpeto, numa tentativa de salvar alguma da pouca sanidade que me poderia restar.

Engulo em seco e respiro para dentro para conter as lágrimas. Não me quero dar à dor, não me quero dar à saudade. Não me quero lembrar do fim de Janeiro nem do princípio de Fevereiro, nem das notícias que chegaram com eles. É com a mais pura humildade que malquero aqueles dias que mudaram a minha vida para sempre, de uma forma que não podia imaginar e para a qual não poderia estar preparada.

Não posso admitir, porém, que tais dias tão desumanos e atrozes me tirem tudo. Ainda que os tente apagar de mim, todos os anos religiosamente, e sabendo de antemão que perdi vergonhosamente, a verdade é que não os deixarei jamais tirar-me a mim as memórias que até então permanecem vivas e me dão a força necessária para combater a impiedosa brutalidade que demonstraram.

O calendário dita que chegou Fevereiro e as lágimas confirmam-no. Tenho uma saudade que me rasga a alma e me atormenta o sono. Não voltarei, nunca, a ser a mesma. Talvez o que mais custe é que, por dentro, sei que sou sempre a mesma. Apenas mais assustada. Apenas mais sozinha. Apenas mais dorida.

E sempre, sempre, mais saudosa.

Não há dia que não pense em ti minha irmã. Fevereiro só acha que te levou. E só eu sei o quanto me custa.

Amo-te Verinha.

Outono.



Querido Avô, 

Ando às voltas com as palavras, sem lhes reconhecer os cantos, o feitio; sem conseguir explicar porque não me saem fluidas da ponta dos dedos sem sequer nisso pensar, como se de repente fizesse cerimónia. Penso que talvez a idade me tenha traído a serenidade da ingenuidade, e a verdade é que esta consciência do efémero dá cabo de mim. Custa-me pensar nos meus que perdi; mais que muito, mais que tudo. Custa-me sentir-vos a falta e asfixio com a sensação de interrupção abrupta da vossa vida como ela era. Sofro por saber que há coisas que já não viram, já não conheceram, já não ficaram a saber. Sofro por saber que há coisas que não consegui concretizar a tempo, não consegui mostrar a tempo, não consegui dizer a tempo. Sinto-me perdida neste espaço temporal tão dinâmico que se assemelha a um aeroporto com aquele burburinho constante e com o para mim pesado incómodo que antecede as partidas. 

Penso que queria escrever palavras bonitas, pintadas de cor-de-rosa, e mornas o suficiente para me aquecer o coração. Mas depois olho pela janela e percebo que o tempo me acompanha o espírito e penso na ironia metafórica das estações que nos acompanham os dias. E agora é Outono, como se de alguma forma o mundo te sentisse o cair, suave como o das folhas que começam a pintar as ruas. Agora é Outono, como se isso pudesse explicar o facto de nos teres deixado naquele dia - faz hoje um ano - em que te vestias de cor-de-rosa, com uma camisola tão suave - cashmere – que só tinha igual na tua pele. Falaste comigo e sorriste, mais do que uma vez. Perguntaste-me pelo Direito, pelo trabalho – oh! adoravas que te tivesse seguido os passos – e depois pelo Pedro, que me sabias feliz, e eu expliquei-te, com carinho, que ele estava lá fora, mas que agora não podia entrar. Fizeste uma graçola com a enfermeira, e fingiste que não te fazia espécie estar ali sentado. E eu fingi contigo, como se fosse só mais uma rotina chata, e a acreditar que sim. 
Deixei-te tranquila, com um leve sopro de apreensão pelo ritmo acelerado com que cantava o teu coração. Digo a mim mesma que não podia saber que não mais te veria a sorrir e tento esquecer aquele momento em que o telefone tocou e do outro lado me saudou uma voz chorosa o suficiente para eu o ter percebido. Senti o chão a fugir-me dos pés e o ar a deixar de me rasgar os pulmões. A alma dói, que ninguém diga o contrário. Perder os nossos é como perdermos um bocadinho de nós. Como se nos fossem recortando a alma e o coração para chegar para todos. E como todos nos dão, nos enchem, nos preenchem; todos nos tiram, nos faltam. E que ninguém se engane, que a dor não passa. A ausência é tão presente como a saudade e ambas nos acompanham até ao fim dos dias. E isso dói. 

Estamos no Outono e continuo a sentir-te a falta. Sempre gostaste do Outono, das castanhas assadas pela Lili e mais tarde pela Fina e da jeropiga guardada no armário da copa e oferecida à mesa em pequenos copos de vidro. Gostavas das nozes e avelãs que nos ensinavas a partir com um sorriso rasgado e a bruxa de madeira na mão. Era usualmente nessas alturas que ias ao teu contador de segredos buscar uns óculos de plástico com um nariz e um bigode que me faziam tremer de medo. Gostavas dos passeios pela Serra de Sintra, pintada pelas reconfortantes cores outonais, em que nos contavas o que podias sobre as casinhas das fadas e dos anões que íamos encontrando pelo caminho, um momento só nosso, mesmo quando já sabíamos que não passavam de contadores de eletricidade ou água. Gostavas do burburinho que ia chegando com o Natal, esse que a Avó preparava como ninguém. Gostavas de te aconchegar na cadeira do teu escritório, com uma manta pelas pernas, a ouvir a chuva lá fora a ecoar no jardim, enquanto lias a Time ou um qualquer livro de história que te viesse parar às mãos – tinhas sempre tanto saber para partilhar. Gostavas de escrevinhar nos envelopes das cartas que recebias, com a tua letra inconfundível, coisa que também já faço. E, melhor que tudo, gostavas de mim, que chegava a tua casa ao ritmo de cada uma das estações, ora mais animada, ora mais vagarosa. Sabia que enchia a tua sala quando ali entrava, e tu enchias-me o coração com o teu sorriso que de imediato e de forma gratuita se abria espontaneamente e com a magia que só a genuinidade veste. 

Podia dizer que não dei por isso, que passei pelas estações sem o sentir, mas seria mentira. Senti a tua falta todos os dias, desde a última vez em que te vi. Espero que me perdoes por não saber que aquele até já seria tão longo. Sinto a tua falta desde então e, uma vez mais, tento repor aos dias um nível de normalidade aceitável. Tento, uma vez mais, aceitar com alguma serenidade as ausências de que sou feita e não deixar que isso me despedace mais do que aqueles minutos antes de adormecer. É tão difícil, doloroso, tenho de respirar fundo e chamar o melhor de mim, mas Avô, fica descansado que tenho ajuda e já não estou sozinha. Não obstante o tanto que me tirou, a vida foi generosa comigo e vai tentando repor-me o coração. E os dias são melhores e mais fáceis. 

Sim, para mim far-se-á sempre Outono quando me lembrar de ti, mas Avô, nunca te esqueças o quanto eu gosto do Outono! 

Adoro-te. 

Sempre tua, 

Sofia

Quando for grande, quero ser como tu.


Sou uma medrosa, uma medricas; tenho parte de mim empenhada ao medo, ao susto, e àquela ansiedade que vem com a preocupação no geral.
Tu, por outro lado, és destemido, corajoso; sempre sereno e despreocupado. Atiras-te à vida da mesma maneira que ela se atira a ti, sem medo ou cerimónia. Ah, valente!
Maneiras de ser antagónicas e ainda assim tão compatíveis que me permitem assistir deliciada, orgulhosa e embevecida – não sem, admito, uma pontinha de inveja - a todas essas tuas proezas que são para mim fascinantes. Encanta-me essa tua familiaridade com a serenidade e a vida, essa que descontraidamente tratas por tu, sem quaisquer indícios de lhe conheceres o carácter efémero.
Se um dia tivermos filhos, Deus queira que sejam como tu, que herdem de ti essa coragem e afoiteza que tanto me encantam.
Se um dia tivermos filhos, gostava que os ensinasses a, como tu, não ter medo de nada. Gostava que os ensinasses a mergulhar, a aproveitar o mar com respeito mas sem medo das ondas. Gostava que os ensinasses a saltar de cabeça, sem chapões, de forma graciosa e sem que precisem de engolir um litro de água. [Atenta porém, que na piscina dos teus pais estás proibido de ensinar quem quer que seja a saltar lá de cima (Mesmo)].
Se um dia tivermos filhos, gostava que os ensinasses a conviver com aranhas e insectos, e a piedosamente matá-los a pedido daqueles para quem tal convivência não é absolutamente possível. 
Gostava que os ensinasses a andar de avião tranquilamente - sem Xanax – que, afinal, é o transporte mais seguro e a verdade é que o Xanax não funciona. Explica-lhes que uma viagem não tem de ser um sacrifício e que é péssima ideia ver o Mayday no National Geographic Channel. Aproveita e explica-lhes que um voo charter não é necessariamente pior ou mais perigoso e que não precisam de escárnio quando a senhora da agência de viagens o sugere. Gostava que os ensinasses a não ter medo de ir sentados ao pé da janela e a olhar lá para fora para sonhar nas nuvens e para não perder de vista que o Mundo é tanto mais do que aquilo que vemos desta perspetiva que nos vem dos pés assentes na terra. Gostava que os ensinasses a não entrar em paranóia com turbulência e a não caírem na tentação de analisar todos os barulhos do avião. Mas ainda que lhes consigas ensinar tudo isto, se um dia tivermos filhos, por favor ensina-lhes também o nosso ritual, para o podermos fazer todos juntos e eu acalmar esta superstição tão minha.
Se um dia tivermos filhos, gostava que os ensinasses a ouvir os barulhos que o Mundo faz, principalmente quando o sol se foi deitar e a lua se orgulha do seu esplendor, e a aceitá-los sem rodeios. Ajuda se lhes ensinares que as séries e os filmes são apenas isso, séries e filmes, ficção que nos deve distrair e entreter, e que ainda que existam vilões na vida real – que existem! - eles não andam sempre por aí. 
Se um dia tivermos filhos, gostava que lhes explicasses que não é preciso ter medo de cães que saltam, que normalmente só querem é brincar. Aproveita e ensina-os a acarinhar e tomar conta, e explica-lhes que é isso que os amigos fazem.
Se um dia tivermos filhos, gostava que lhes ensinasses que nem sempre o Mundo é seguro, mas que por vezes podem, com cuidado, experimentar os caminhos secundários da vida, sem que tenham necessariamente de se perder ou chegar a sítios indesejados. [Quanto a cortar caminho na A2 para Alcácer, não vou mudar de opinião] 
Se um dia tivermos filhos, gostava que lhes ensinasses que se deve experimentar tudo, sem deitar a língua de fora ou fazer cara de enjoados. Explica-lhes o quanto gostas de lulas, polvo, percebes e marisco em geral; que sabem a mar e que isso é bom. Eu prometo fazer o mesmo com as favas. 
Se um dia tivermos filhos, gostava que os ensinasses a andar de bicicleta sem ter medo de cair, porque sim, cair magoa, mas isso passa, e não há nada como andar a pedalar com o vento na cara. Gostava ainda que lhes ensinasses que se caírem se devem levantar, e que depois sim, podem chorar no abraço de alguém, sendo que o nosso estará sempre disponível.
Se um dia tivermos filhos, gostava que os ensinasses a não terem medo de andar em montanhas russas, que a vida é a que mais voltas tem e a viagem é sempre mágica. Explica-lhes que o frio na barriga que antecede a volta é sempre sinal de uma emoção forte e que isso geralmente significa que valeu a pena. Ensina-lhes que vale sempre a pena, e que a alma é grande o suficiente para albergar todos os nossos sonhos, mesmo aqueles que não ousamos contar.
Se um dia tivermos filhos, gostava que lhes explicasses que a ponte sobre o Tejo é segura e não vai cair, e que o barulho na faixa da esquerda é apenas um mal necessário. Aproveita e explica-lhes que o mesmo se passa com os passadiço do Colombo e que não devem ter medo de lá passar (aproveita e explica-lhes que as pessoas não mordem). 
Se um dia tivermos filhos, gostava que lhes ensinasses que não é preciso ter medo de palhaços ou homens estátua. Explica-lhes que são apenas pessoas com a cara pintada e uma roupa estranha e que, uma vez mais, séries e filmes são apenas isso mesmo. Se quiseres leva-os ao circo e conta-lhes sobre o dia em que me convenceste a ir e o quão especial foi esse dia.
Se um dia tivermos filhos, gostava que lhes ensinasses a não ter medo da bola, a correr sem medos e com garra, que o futebol é espectáculo. Aproveita e ensina-os a trabalhar em equipa, ainda que pensem por si próprios. Fala-lhes desta nossa convivência harmoniosa, encarnada e verde e deixa-os escolher a sua própria cor (verde, verde, verde).
Se um dia tivermos filhos, gostava que lhes ensinasses que ninguém gosta de agulhas, mas que não é preciso ser um drama sempre que precisarem de fazer análises. Aproveita e explica-lhes que, se são capazes de engolir bocados de carne e de pão, também conseguem engolir comprimidos, é uma questão de qualquer coisa que eu, em particular, ainda não descobri.
Se um dia tivermos filhos, gostava que lhes ensinasses que o desconhecido não é sempre mau e que por vezes é quando menos esperamos que mais nos divertimos e que as pessoas mais nos surpreendem pela positiva. Explica-lhes que não é preciso temer a mudança ou aquilo que os outros podem eventualmente pensar de nós, o importante é a nossa consciência e a maneira como os nossos actos reflectem os nossos valores e ideiais e nos permitem conviver em paz com nós próprios. Explica-lhes que essencial é viver e viver implica aceitar mesmo aquilo que não conseguimos compreender.
Há muitas coisas que gostava que ensinasses aos nossos filhos, se algum dia os tivermos. Mas gostava, principalmente, que lhes ensinasses essa tua maneira de ser. Gostava que os ensinasses a não ter medo de nada, incluindo a não ter medo de ter medo. 
A verdade é que o medo existe e isso não tem mal se te tivermos ao lado.


* M.

Palavras esdrúxulas.


Bem sei que todas as cartas de amor são, alegadamente, ridículas. Mas, meu bem, ridículo seria não te dizer o quanto me alegras, me serenas, me acarinhas. Ridículo seria não saberes que mudaste a minha vida, para melhor – tão melhor -, desde o primeiro dia em que dela fizeste parte e que isso tem, para mim, um valor incalculável.

Podem zombar do que te digo, pouco me importa. O meu coração alenta o que a cabeça pede à mão que aqui escreva. E é a sorrir que te lembro e me tento esquecer da saudade que me embala as horas.

Não há dia que passe, em que não dê por abençoada esta vida que Deus quis e que quis que eu quisesse – oh, e quero tanto! Que vida tão rica, desde que te encontrei. Os dias são novos, é sempre assim, mas a métrica por que me guio é a mesma e, ainda assim, sinto-a diferente. Como se valessem mais. Estou certa de que os vivo mais, e de que isso a ti te devo – obrigada!

Polvilhas os meus dias com doçura e aconchegas-me as inseguranças numa manta remendada de coragem. Ao teu lado sou rei, rainha, a maior da minha aldeia! Posso tudo o que almejo, ou pelo menos acredito em tudo o quanto posso fazer. Acredito no meu eu em que acreditas, e ganho forças para o caminho. Um passo em falso não é o fim do mundo, esse que iluminas com um simples sorriso. Como quando me ouves chegar a casa e corres para a porta para me abraçar. Sinto amor a pulsar em cada punhado de ar que inspiro, como se por dentro se soltassem balões e se atirassem confettis coloridos. Sou feliz.

Há muitas mais coisas ridículas que te poderia dizer, que não seriam, porém, mentira nenhuma. Como quando adormeces demasiado rápido, cansado, e eu não consigo desligar a luz para te ficar a ver dormir, sereno, porque isso me aconchega e me transfere igual serenidade. Fico a sorrir sozinha com os trejeitos que fazes com a boca. Podia dizer-te que quando acordo de um pesadelo me encosto a ti para te sentir o respirar e que é apenas por isso que consigo voltar a adormecer. Podia tentar explicar-te que sinto o mundo a descomprimir quando oiço a chave na porta e sei que vais entrar, como se pudesse regular a intensidade da luz e o seu brilho estivesse agora no máximo.

Podia dizer-te tanto, e no entanto, vou deixar que o ridículo do amor fale por mim, e que de todas as vezes que me vejas sorrir, percebas que essa é a maior declaração de amor possível, que um sorriso genuíno vem de dentro, e não há nada de ridículo nisso.


 
  * Porto Covo.

O desfado do acordar.




Hoje acordei zonza, levantei-me de olhos fechados, ainda naquele limbo que nos prende entre a vida e o sonho. Acordei sem saber se o que sonhava era de ontem, ou de hoje; sem saber distinguir a realidade do imaginado e o fado do desfado.
E foi nesse acordar ansioso que ouvi a Ana Moura a cantar, que amor afoito é feito de anseios e os meus eram tão só de te saber bem.
Dizem na televisão que esta noite choveu, e que hoje a chuva ainda vai cair, mas eu que ainda tenho ramelas nos olhos, acredito que daqui até ao verão é um instantinho, menos do que aquele que demora alguém a poder dizer que se despiu a saudade. Que não se despe, sei eu bem. Mudam-se-lhe as roupas, adaptando-a às estações. Por vezes o acerto corre de feição e a camuflagem é perfeita, nem se dá por ela. Noutras, como hoje, o frio ou o calor denunciam-na. Claramente, a case of you. Vá-se lá perceber da vida, ou de que ela quer. Já te disse que o importante, dizem, é como a levamos, à vida, como superamos cada desafio e dificuldade com que se atreve e como aceitamos cada bênção que nos oferece. E tu gostavas de mim, quando me ouvias falar. Oh! E falava tanto! A minha descrença e timidez nunca atingiram as palavras; sempre acreditei nas palavras. Nas minhas, nas tuas, nas da vida. As palavras querem-se sãs, revestidas da ingenuidade do momento e livres de quaisquer patetices ortográficas que inventem. Havemos de acordar um dia e descobrir que nem tudo foi real, apenas realmente imaginado. A magia desse acordar será então cantado p’la fadista, aquela que vive nas esquinas de Alfama com o coração na voz e as mãos na anca. Eu gostava de ser fadista, mas o rouxinol não me deixou. Fiz de tudo mas falhei, e se não me faltam as palavras escritas, que nunca me deixam ficar mal, que falta fazem as cantadas. Se acaso um anjo viesse, poderia pedir-lhe ao ouvido que me pincelasse a voz com asas, para poder cantar um fado alado que te mandaria entregar em casa dentro de uma caixa amarela que chegaria às tuas mãos a cheirar a orvalho, com o primeiro raio de sol da manhã. Seria a sorrir que pensarias em mim, e quem por ali passasse poderia ouvir-te um sussurro carinhoso em que deixarias escapar “a minha estrela”. No meio dos teus aplausos, atirar-me-ias flores, nada de rosas, que sabes que não aprecio, mas daquelas flores inteiras e sem manias. E de mão na anca e xaile nos ombros, desfazer-me-ia em vénias sorridentes, com as pestanas a piscar e o coração a saltitar. Ririas muito, chamar-me ias “tonta” e eu largaria então um thank you, armada aos cucos. E como nunca mais me quererias deixar ir, e eu não mais quereria deixar-te ficar, seria ainda com a cabeça nas nuvens que teria de agradecer ao anjo e voltar para o outro lado do sonho, o outro lado do espelho da Alice, a correr atrás de um coelho branco para cansada voltar a dormir o sono dos justos. Seria serena e reconfortada por um dream of fire, que de coração quente te relembraria assim, com carinho e nostalgia, para voltar então a acordar saudosa quando o sol espreitar de novo.




* Douro.


Avó Maria.



Um ano.
Faz hoje um ano desde a última vez em que te vi. Um dia de vida, um ano de saudades.

Estavas deitada, com ar sereno, indiferente a toda a parafernália de tubos que te rodeava e cruzava o corpo. Os teus cabelos brancos, impecavelmente penteados, estavam estendidos inertes, numa almofada de um branco imaculado, e a tua pele brilhava, munida de uma suavidade que só vem com a idade. Tinhas os olhos fechados, mas, ainda assim, não me coibi de te falar, certo de que me ouvias.

Cantei-te todas as palavras que me afloraram à boca, e fiz-te perguntas que ficaram a pairar no ar, sem qualquer resposta. Falei sem reservas, porque me ouvias. À tua volta contei uma coleção de caras graves e tristes que me aumentaram a angústia. Solucei para dentro, não desfazendo a pose e não me permitindo chorar. Fiz-te festinhas e dei-te um beijo na testa antes de sair. Percorri aqueles corredores longos e frios sem a certeza de te ver outra vez, mas sempre com a esperança de tal ser possível.

Soube, umas horas depois, que o não faria. O meu coração pingou. Lágrimas d’alma, a rodos. Senti um vazio frio que me tirou o chão e me fez sentir garoto outra vez.

Não estou certo de ter compreendido logo o que se estava a passar. Talvez ainda hoje não o compreenda.

E, hoje, um ano depois, não é sequer assim que me lembro de ti. Não é naquela cama de hospital que te relembro. Não é de olhos fechados que te vejo. Quando chegas, chegas sempre a sorrir, olho brilhante e palavras afiadas na ponta da língua. Oh! E o quanto adoras tu falar! Acho que, mais do que isso, adoras ter quem te oiça e te perceba o dialecto. É sinal de que não estás só. E tu és pessoa de pessoas, pessoa de gentes. Não cresceste sozinha e não nos viste crescer sem ninguém.

Quando chego, de casaco ainda posto, palmilho sempre o corredor para o meu quarto e a meio caminho, à porta do teu, paro tão só para ouvir um “txigaste?”, tão típico da tua terra. É então que abro um sorriso e respondo “olá Avó”.

Sei, de antemão, que vais refilar com a minha barba, que está grande, que tenho de a fazer, que fico mais bonito de cara lavada, mas também sei que tal discurso acabará sempre com uma apaziguada declaração tua, certa de que sou um bom garoto. E eu lá saio com a barba por fazer, mas com o coração feito de vaidade. 

Pedes-me água quente, porque isso, estás convencida, lava e cura todas as maleitas do mundo. E eu faço-te a vontade, porque quero acreditar contigo. Olhas pela janela, tua fiel companheira dos dias, e teces um comentário acerca de alguém que vês a passar. E é perdida nesses pensamentos que te deixo, seguindo em frente para o meu próprio mundo, aquele de que faço o meu quarto.

Quando me lembro de ti, lembro-me de te ver na cozinha, sentada, televisão ligada, a cortar feijão, ou a descascar batatas para a sopa. Foste sempre incansável, verdadeira dona da casa, esse barco que comandavas sem qualquer esforço ou sequer queixa. Assim o levavas a bom porto, porque o sabias o teu fado. E assim vivias contente, ciente de ter criado uma família inteira nesse convés de vida que te permitiu crescer e, a nós, crescer contigo. E mesmo em dias maus, quando eu e o meu irmão te arreliávamos o juízo, encontravas dentro de ti a paciência para nos amar. E foi nesse amor genuíno e altruísta que crescemos, sempre habituados a ter-te por perto. Como se essa proximidade fosse certa e sinal de que aqui estarias sempre.

Relembrar-te é fácil, difícil é a saudade que se instala num sopro quente e que invade o coração que ainda bate.

Dias há, em que palmilho aquele mesmo corredor, e ainda paro à porta do teu quarto. Como se te fosse lá encontrar, sentada à janela a olhar o mundo, caneca de água quente ao lado. E então, de coração quente, sorrio baixinho.

«Txiguei Avó.»





* Para o Pedro, para que se lembre sempre de que o Amor continua constantemente a "txigar". E é nesse amor que terá sempre a Avó Maria.


Paralelismos de saudade.



Os dias correm sempre a uma velocidade contrária ao querer. Como se querer demais gostasse de fazer pirraça e ostentar o seu poder de forma ignóbil.

As semanas levam o seu tempo, molengas, arrastando-se um dia atrás do outro, prestando vénia à segunda-feira.
Já os dias, esses voam, como se não se quisessem perpetuar para dar lugar a outro. Outro que se espera sempre que venha, que chegue, que, por sua vez, traga outro atrás de si.

E é nesta dança das cadeiras que vamos respirando, querendo, vivendo. Sempre como tem de ser, sempre connosco.

A saudade acompanha os dias ao longe, mas sempre vigilante. Anda na estrada secundária, discreta, traçando uma espécie de destino paralelo daquilo que foi; daquilo que podia ter sido.

O desafio maior é conseguir continuar, porque não há outra opção, e, de quando em vez, conseguir abrandar e olhá-la nos olhos em jeito de desafio, como quem diz “eu sei que estás aí, mesmo que finja não te ver”. E no meio disto tudo, não ter medo. Porque ela também não tem.

Tenho a saudade em mim, mas ela só me tem se eu quiser.



* Gicas @ a road to Montemor.

Moinhos de vento.




Saio à rua e dou por mim numa Avenida larga, envolta num turbilhão de folhas que tentam cantar os encantos da Primavera. Uma canção fingida, sem cor, já que o frio nos remete para trás, e é assim que vamos, às cambalhotas, até ao fim daquele túnel de vento que nos congela os movimentos e nos aquece as memórias.

Penso na imensidão do espaço; de como esta nos diminui o tamanho mas ao mesmo tempo nos aumenta a sensação de liberdade.

E isto é verdade, verdadinha, ainda que, por vezes, me sinta pequenina mesmo no meu canto e agrilhoada no exterior.

   
* Gicas.

A reconfortante serenidade da agitada monotonia do Amor.


Não é difícil escrever as tristezas. Rolam como lágrimas desalmadas que, aconchegadas no canto do olho, saltam para o mundo sem pudor.
A angústia escreve-se sozinha, não chega a ser uma espécie de relato, antes um lamento que se ouve baixinho e ao longe, como quando se vela o infortúnio.
A dor dispara para todos os lados, sem olhar a quem, apenas sabe que se suporta melhor acompanhada e, oferecida, gosta de exibir os dotes sem deixar ninguém indiferente.

Escrever tristezas é como soltar a alma para os dedos e deixar que estes projectem o que não conseguimos calar. Há uma facilidade arrebatadora em nos rasgarmos em pedaços e de seguida soltar ao vento todos os fragmentos da nossa dor. O dilema menor da tristeza é como se espalhar, como persistir. Não há serenidade na dor, antes um resignado definhar ao tumulto dos medos e ansiedades que nos habitam as sombras.
Dilacerados sabemos que sobrevivemos, que as desgraças têm sempre prazo de validade.

Difícil, difícil, é narrar a monotonia do Amor. O Amor não se força, não se escreve sozinho, antes deixa que o narrem com tempo, com serenidade e carinho. Amor são palavras que brotam do silêncio quando ninguém se atreve a falar. Amor é um relato que não se estuda ou decora, antes se veste como um mérito, uma bênção reclamada espontaneamente pela cumplicidade, lealdade, convicção e enamoramento. Não se sabe de onde vem ou como e quando se começa a instalar, mas a verdade é que a sua força é devastadora e difícil de ignorar. No Amor não interessa se se é o primeiro, ou o melhor; nunca se é o único. O Amor é singelo e é essa humildade e generosidade, esse altruísmo que se renova constantemente em sorrisos naturais e espontâneos que se pode arrogar o mérito de ser alicerce dos amores mais genuínos, mais verdadeiros.
O Amor resgata-nos à solidão e renova-nos o ser. O Amor resguarda-nos e ao mesmo tempo projecta-nos, reflectindo o melhor de nós. O Amor torna-nos mais doces ao mesmo tempo que nos torna mais fortes. O Amor projecta-nos a alma que escondíamos na timidez e no conforto da nossa imaginada consciência de ser. O Amor enaltece as grandezas que nos rodeiam e torna-nos melhores. Somos melhores com o amor. A integridade dos sentimentos reforça-nos o ser, pois que ainda que ninguém o consiga explicar, o amor sim, é uma história mais difícil, mas igualmente digna de se ler.

E eu, aqui, apaixonada, com o coração repleto de amor, com os olhos abertos para um mundo mágico que nem sabia existir, consciente de tudo quanto me rodeia, a viver sob um céu mais azul desde que te conheço, constato, agora, a dificuldade que é narrar a monotonia do amor. O Amor é mais difícil de escrever, que a monotonia da serenidade não se gosta de exibir, mas, a verdade, é que não me canso disso.

A[Douro]-te.

* Douro.

Fevereiro chegou ao fim.



O frio que faz gela a sombra da tua ausência, queimando em mil pedaços a memória que te guarda o riso.
E eu, neste momento congelado em mim, que me desfaz no tempo ou o tempo desfaz por mim, inspiro golfadas de ar que me permitem manter quente o coração.

Não te perco no tempo, antes te trago cá dentro.

 
* Gicas.
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