Dos irmãos.


 

Há uma frase que li e que de quando em vez a mim regressa: “Um irmão que morre fecha a porta da infância para sempre”, escreveu Agustina.
Há ecos que doem de forma diferente.
Morreu-me uma irmã. À minha Mãe morreu-lhe um irmão. Não deixo de ter medo disso, quase como se me angustiasse a hipótese de ser uma espécie de triste fado que percorra esta artéria familiar.
E, ainda que saiba que a Agustina tem razão, não deixo de me regozijar perante a facilidade com que, não raras vezes, o desminto.
Tive uma boa infância. Uma óptima infância. Vivi o tempo com tempo, hoje gabo o poder de uma educação sóbria e racional. A valorização sensata de valores e a serenidade da ingenuidade sincronizada permitiram-me ser criança para daí ser jovem e assim sucessivamente.
Infância rima com irmã, porque há laços de sangue que nos constroem por dentro e nos agarram a alma ao corpo na altura certa. São pilares que nos mantêm firmes pelos percalços do caminho. Os irmãos gerem o sangue com uma linguagem muito própria. Falam verdadeiros dialectos de ternura, mesmo quando gritam sem nexo ou fazem queixinhas. Há palavras que se aprendem e ganham outro significado com um irmão, como partilhar. Porque sem que nos digam sabemos que ali estarão para sempre, para tudo, como se padecessem das nossas dores só por terem ganho forma na segurança de um mesmo útero. A vulnerabilidade congénita de que sofremos é atenuada pela mera presença de um irmão. Talvez por isso seja tão dilacerante a sua ausência. Quando a vida nos rouba um irmão, não conseguimos deixar de deitar um esgar maldoso para o universo e dizer asneiras bem alto. Que a vida é injusta e a morte demasiado precoce.
E a saudade nem sempre tem de devastar, que a mesma pode ser educada numa reconfortante companhia que nos aquece o coração nos dias mais cinzentos.
Talvez por isso essa seja uma porta que não queira fechar. Não por ter medo do desgaste da pele, do cansaço do corpo, mas tão só por ter sido um tempo feliz.
É assim que não consigo deixar de me regozijar perante a facilidade com que, não raras vezes, desminto o que li. Tive uma boa infância. Tive uma óptima infância. Bem haja a bênção de ter tido uma irmã.

  * Avó, Avô, Mãe e dois dos seus cinco irmãos.
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