Tia Maria.


Ainda não tinha aberto os olhos quando me quiseste contar uma história. Começaste a medo, ideias desorganizadas, perdeste o fio à meada. Mas depois abri um olho e descobriste o norte e a história rezava assim:

«Todos os anos é a mesma coisa. Uma espécie de tradição familiar que alguém se lembrou de começar quando o tempo ainda lá ia atrás.
É sempre em Julho, que quis a vida que nascesse então. O calendário preenche-se assim, com os nossos, ou então os números seriam apenas rabiscos sem sentido.

Por esta altura já o calor se instalou no seu podium, com vista de mar e privilégios de administrador. O sol aquece, provocador, como se nos quisesse ameaçar de um brilho sem fim.

A azáfama repete-se em goladas refrescantes que enchem a casa de vida e os silêncios de ar. O ritmo declara que se acorda cedo e as mesas são postas logo pela manhã. A praça recebe a visita da Mãe, sempre acompanhada pelo Pai, fiel companheiro dos dias. O velho cesto de verga enche-se de coentros, alface, pimentos e tomates. A salada é sempre verde e os pimentos bem assados. As sardinhas, essas, já se fizeram adultas e anafadas e parecem prontas para dois dedos de conversa com o grelhador do jardim. Depois ainda há o queijo e o presunto e não podemos esquecer o pão, inteiro, sem vácuo, afinal é pão de Mafra. Depois vêm os tachos, as panelas, que falam sempre alto. Uma tia faz arroz e as outras andam à volta das entradas. Nunca pára o burburinho, que o silêncio nem sempre se coaduna com a alegria. Cheira a verão e o apetite enche-se de coragem. Os copos suam o gelo e mantêm fresco o espumante e o vinho branco.

Apesar da azáfama, o que sobra é sempre a calma. Há tempo, ainda que não saibamos quando acaba. Nada é feito com pressa, apenas com zelo. Não há hora marcada para nada e o andamento é feito ao compasso da vontade colectiva. Os convidados vão chegando à vez e já se sabe quem chega primeiro e quem será o último a chegar. De outra maneira não seria a mesma coisa, que as tradições contam com o hábito e os costumes contam com as pessoas. É certo que os mais atrasados talvez já não vejam as empadas quentinhas pousadas na mesa do canto, mas quem não vê é como quem não sente.

A rede baloiça e a suave brisa que se faz sentir é promessa de que voltará a estar cheia. A música toca baixinho, numa espécie de embalo. Lá em baixo a piscina promete refresco e o seu azul hipnotiza os mais encalorados. Mais tarde, é certo, aparecerá a preguiça, sem convite mas não se fará rogada.

De barriga cheia cantam-se os parabéns, para gáudio do brilho dos seus olhos. O melhor presente é a presença constante dos que nos rodeiam e não há nada que lhe dê mais prazer.
Um beijinho e outro, seguidos sempre de um abraço. Rodam à vez, todos a querem parabenizar. Os mais velhos e os mais novos, indiferentes às marcas do tempo, que cada um assume à sua maneira. A família cresce mas vai sempre havendo lugar para mais um. E ela quando gosta, gosta mesmo, que é esperta para saber que não há outro tipo de gostar.

Todos os anos é a mesma coisa. Uma espécie de tradição familiar que alguém se lembrou de começar quando o tempo ainda lá ia atrás. Mas agora que o tempo aqui chegou, lembrou-se de a levar e este ano não será a mesma coisa.

Se o vizinho de cima por ali passar, numa espécie de congelar do tempo, vai achar tudo igual, reposição de um filme, que não há nada que deixemos faltar. Mas quem por ali anda sabe a verdade e a verdade é que o tempo a levou e nunca mais nada será igual.

A tradição manter-se-á, homenagem sentida a tudo o que representa. O seu lugar estará vazio, como vazio me faz sentir a saudade. Mas que se alegre, onde estiver, que uma coisa é certa, cheio trago o coração, aquele onde sempre terá lugar.

Parabéns Avó.»

 
* Alentejo.
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