Letters of recommendation #2


Meu querido,
Não gosto destes dias intransigentes que me roubam uma hora. Que de mim te roubam uma hora. Que ideia néscia e imprudente.
Tenho a alma irrequieta, culpa do silêncio das tuas últimas palavras. Sei que estavas chateado, ainda que não saiba porquê. Sei que estava chateada, ainda que o não te tenha dito. E sei que sabes que enquanto não discutires comigo não vamos poder fazer as pazes.
E é por isso, por te querer tão bem, que em jeito de oferta de guerra, qual Bismarck coberto de pragmatismo, te escrevo hoje, tentativa algo vã de te despoletar a ira, para que refiles, e reajas, vociferes o que te aprouver, para que então, mais tarde, ira amainada e cabeça no lugar possas apaziguar este caos da tua ausência que num segundo roubado me engole.
Sim, leste bem, é isso mesmo. Podia inventar mil desculpas ou construir histórias rebuscadas para me tentar explicar, mas não o vou fazer. Vou tão só pedir-te que te zangues, que me dês oportunidade para te explicar o porquê de estar também zangada. Tudo com a secreta esperança de que seja breve o interlúdio para que restauremos a paz e eu, que já sei como acabam as guerras de almofadas, te possa adormecer de novo nos braços.
És vício e o resto é conversa. Uma espécie de astro rei em modo privativo. Ah! e o que as pessoas gostam disso, não da privacidade, não te enganes, antes da exclusividade brilhante com que se iludem. És um hábito inveterado, arraigado no ânimo e cosido no tempo.
Raios te partam.
Ora, anda lá, zanga-te, não me deixes praguejar, dizer asneiras, sabes que não gosto. Caramba, estou irritada, zangada, triste com os teus actos e omissões, por não seres - quanta ironia - fiel á contrição. Magoa-me. E tu sabes porquê. De resto sempre soubeste mais do que aquilo que me querias fazer acreditar. Esperto a dormir. Eu, ingénua que dói. Mas, deixa-me que te diga, foram poucas as mentiras que disseste que eu acreditei verdade. Acho que só a vergonha me impediu de to fazer notar. Chama-me tola, mas gosto demasiado de ti para conseguir ver-te constrangido. E foi assim que foste acreditando no meu acreditar em tudo o que dizes. O que é mentira, que só acredito nos teus olhos. E mesmo esses também vêm por vezes ao engano. Mentes mal meu amor. E isso alegra-me.
E eu, irritada, não penso se não em ti. Acordei cedo, cedíssimo, mas sei que àquela hora já estarias de pé. Pensei com saudade nos dias em que me trazias na boca logo pelos primeiros raios de sol, com medo de me acordar mas, ainda assim, com vontade. E eu agradecia baixinho, não fosses tu deixar de o fazer.
O que eu não daria para me fartar de ti. Tu que me roubas o fôlego com esses olhos que ardem de vida decorrida e por decorrer. E é - eu sei-o - com algum prazer mórbido que me deixas neste limbo sombrio e doentio construído em cima de medo até à próxima vez. Aquela que pode não chegar. Colada ao chão, estoicamente, para conter o desejo e tu a achares que te toco quando quero, sem perceber - pateta! - que não te chego a tocar uma fracção daquilo que gostaria. Não posso pensar sequer a que sabe tocar-te a pele de relance, com tempo. É um tormento de todo o espaço livre que possa sobrar nos dias. E este imaginário, esta falta de realidade tem ganas de pirómano e eleva o medo a expoentes máximos.
Querias vir com a chuva, sem medo de que isso te apagasse, e eu, imprudente, deixei. 
E agora choves cá dentro e não há janelas que te consigam conter.
E eu absorvo-te devagar. Sem que, contudo, te consiga absolver dos pecados cuja vontade instigaste em mim. E em ti, que te deixava rouco. E eu tento. Sem tentar muito.
E o mundo, sempre tão directo e insensível, ainda se espanta e ofende com a sinceridade.
Zanga-te comigo, para que possamos fazer as pazes.

Já podemos ir ler para a frente da lareira?



* Inês.

My photo
areservamental@gmail.com