E depois há dias em que abrir os olhos nos rouba um pedaço.
Dias em que, despedaçados, maldizemos o acordar, em jeito hipócrita mas sentido, porque nos deparamos com uma bênção que, de modo algo irónico, dói.
Arde no peito a saudade, rasga qualquer laivo de racionalidade que nos reste, tolda a lucidez que nos veste.
Martírio esse que é encontrar o mundo sem uma peça essencial.
Como se escondessem o sol ou despejassem o mar.
Mas em pior.
E nós que pedimos tanto, pedimos tanto que a não levassem, a não perdessem, a estimassem.
Porque é isso que fazemos, que sabemos fazer.
Estimamos os nossos, por eles, e pelo todo que fazem.
É essa estima que agora nos sangra por dentro.
Deixados ao vácuo quaisquer súplicas e suspiros, procuramos na luz a luz que não vemos desse sítio escuro em que propositadamente nos escondemos.
Vontade de fugir aliada a uma impotência de o fazer.
Para onde?
É como fugir do ar.
Worthless.
Desmoronar caótico e chocante de um eu estrutural com que nos pintamos.
Construímo-nos devagar, primeiro com ajuda, depois, à medida que vamos crescendo, com uma falsa independência que nos permite acreditar em capacidades extraordinárias que não temos.
Mas que almejamos.
E isso basta-se.
E depois há dias assim, em que acordamos num espaço em branco rodeados de espelhos que não queremos confrontar e de um vazio que nos enche em demasia.
Na garganta engasga-se o choro, que a vida é isto e não queremos acreditar.
Se a vida é isto temos de acreditar.
E acreditamos, e só assim conseguimos piscar os olhos e voltar a acordar.
Continua a doer, mas sobra o conforto de constatar que há sempre alguém que generosamente nos preenche os espaços em branco.
Para a Daniela, que deixou o mundo desfalcado, deixando um espaço em branco na minha querida Inês.
* K's Choice - Live for real.