Foi num
dia destes.
Sem saber como deixaste de aqui
estar. Minto, foste-te embora, mas não deixaste de aqui estar. De repente toda a tua presença se tornou latejante e fui invadido por
uma saudade lancinante.
Ao início
tive-te sem questionar. A idade impedia-me de tirar grandes ilações e a tua
visita foi-se prolongando no tempo sem tempo para terminar.
Cresci à
tua beira, a ouvir-te sorrir e a ver-te na azáfama a que a tua vida, por vezes dura, já te tinha
habituado. Ensinaste-me o que pudeste, provando que a escola da vida supera
sempre os bancos da escola. Deste-me a mão muitas vezes, calejada por todas as
tarefas que sempre desempenhaste sozinha, como ninguém. Nunca tiveste medo da
vida, mesmo quando esta, zombateira, te atirou pedras. A família enchia-te o sorriso e deixava-te
o coração palpitante por disfarçar. Era com humilde vaidade que a vias crescer
e singrar.
O preto
tingia-te a figura mas nunca a alma. Aguentaste-me as tropelias e as birras e
embalaste-me quando o mimo se confundia com sono.
Contigo
criei laços ao que sempre chamaste terra.
Deixaste-me o orgulho nas minhas raízes e é talvez por isso que cada regresso me sabe sempre a casa.
Sei que
quem sou é parte de quem és. Serena-me a certeza de serem teus muitos dos meus
traços; destes meus jeitos que me vão caracterizando as marcas da pele.
Gostava
de te ouvir a contar histórias, mesmo quando te repetias, mesmo quando fazias
uso de palavras que ainda hoje não sei o que significam. Pela tua boca a língua
não morria; vivia em termos castiços que me faziam sorrir. As tuas histórias
eram pedaços de mim relatados de forma viva e contínua. Fizeste-me viver vidas que não vivo e é grato que me sinto por
todas as vezes em que te ouvi.
Hoje, aqui
chegado, habituado à tua silenciosa presença, sinto-te a falta quando por ti
passo. Deixaste os teus espaços vazios e há noites em que ainda consigo ouvir
os teus passos. Se me esforçar oiço-te chamar por mim e sinto-me tolo por
continuar a correr em teu auxílio.
Temi querer
adivinhar como seriam os dias de ora em diante. No meu íntimo sabia de antemão
que o mundo tal como o conhecia mudaria para sempre. Assusta-me o frio que aqui
deixaste; que me serenava o teu calor que sempre tomei como certo.
Acho que
sempre soube que terias de ir, mas não contei com esse dia no calendário,
tamanha a sorte de me teres dedicado tanto do teu tempo.
Vou continuar
a fazer tropelias e a crescer ao meu próprio ritmo. Voltar à terra será sempre voltar a ti. E isso
deixa-me feliz.
Porque sim, foste embora, mas não deixaste de aqui estar.
Fica
com o meu abraço, Avó.
* Serralves.