Sometimes reality is more cruel than our worst nightmare.

Provavelmente terias acordado cedo, a Margarida não te deixaria dormir muito, com aquele choro preguiçoso e meloso de quem começa a descobrir o mundo. Com o maridão ainda a dormir, a primeira coisa que farias seria ligar à mãe e ao pai - sem sequer lhes dares tempo de te ligarem - sempre adoraste que te dessem os parabéns. Ias falar a sorrir, e sabendo que sim, ias, ainda assim, perguntar se tinhas presentes - ao que eles diriam que não, alinhando na brincadeira. Estarias deliciada, como quando fizeste 18 anos e os celebraste a brincar.
O teu sorriso doce não te daria descanso. Hoje não irias ao jornal, terias tirado o dia para ti, sabendo de antemão que é o teu dia preferido. Aproveitarias para ir almoçar a casa do avô, que te ia dar um envelope com o teu nome escrito a preto, marcador grosso, não conseguindo conter aquele sorriso de criança que o acolhe quando estamos por perto. A Ana ligar-te ia para ir lanchar à garret, um brioche com fiambre e um leite com chocolate fresco. Eu ia sair mais cedo, para ir ter convosco, agarrar na minha sobrinha, sentir-te no meu abraço e falar sobre a vida. Iamos rir muito. Levar-te-ia um presente comprado com tempo, com a ânsia de que gostasses, sabendo desde logo que jamais serias capaz de dizer o contrário – sempre foste demasiado doce para isso, sempre com o cuidado de não magoar ninguém. 
Como parece verão, iríamos jantar fora, talvez ao visconde, que o pai faria questão. O Zé Manuel dar-te-ia os parabéns mal entrássemos, a mãe à frente, vaidosa com a neta, seguida do pai a quem o Augusto começaria a picar por causa do Sporting. Já sentados, à nossa espera, estariam a tia Teresa, o tio William, a tia Marta, o tio Pedro e o Bernardo. As primas chegariam atrasadas, mas não iam faltar. A Leonor já te teria ligado de manhã, sempre atenta, e a Maria levar-te-ia um presente feito por ela. A Inês teria de certo uma canção ensaiada, coro acompanhado pelo Francisco que já fala inglês. Logo depois de nós chegaria a Angela, que te viu crescer, com um ramo das margaridas de que tanto gostas. 
No fim, que ela te adora e faria questão, o bolo de chocolate da tia Marta, coberto com framboesas e com um enorme 28 cheio de purpurinas em cima. Depois dos parabéns já sabes o que te esperaria, for you're a jolly good fellow que a família nunca perdoa. Gostaria de dizer que estaria agarrada à minha máquina a tirar fotografias, mas já sabes que a verdade é que não largaria a minha sobrinha. Despedir-nos-íamos felizes, aquecidos por dentro, como só a família sabe fazer. E chegada a casa deitar-me-ia serena e dormiria até de manhã, sem qualquer insónia ou pesadelo.
Provavelmente seria assim. Ou talvez fosse diferente. Ainda assim seria perfeito. A teorética idealização que teci num minuto é suficiente para me deixar inquieta. Não há outro impossível que mais almeje. Se é verdade que as saudades me acompanham todos os dias, dias há em que não me dão descanso - dias como hoje, em que me pesam mais nos ombros e me incham nos olhos depois de uma noite em claro a rever-te naquele filme demasiado curto que só contou com 18 anos de vida. E eu que nunca contei com isso. Provavelmente seria assim. Mas nem sempre a realidade se coaduna com probabilidades, e as regras para as incertezas da vida saem-nos tantas vezes goradas. As estatísticas são apenas isso, e por vezes estragam-nos as contas. A nossa esperança na sorte é incauta e o aleatório deixa para trás a lógica e quando chega à curva apanha-nos desprevenidos. 
Hoje farias 28 anos, no ano em que já contei 10 anos desde que morreste. E sem saber como isso continua a matar-me lentamente, como se se pudesse morrer uma e outra vez. Provavelmente é normal, bem sei que todos morremos aos bocadinhos. Mesmo tu, que morreste de uma vez, perduras em pequenos bocadinhos que faço questão de coleccionar, guardados naquelas caixas seladas de saudade.
Provavelmente seria assim. Mas eu, farta de simular probabilidades impossíveis, improváveis, incompatíveis com a crua realidade, só te queria dar os parabéns. Gosto tanto de ti. Parabéns minha querida.


* Londres.
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