Letters of recommendation #1

Querido tu,

Tenho tentado não pensar em ti, sei que acreditas, mas a verdade é que o vento tem soprado de Norte e com ele chega-me à ponta do nariz o teu cheiro em salpicos que vais deixando pelo caminho. Sei que me ouves, mesmo quando o teu narcisismo cobarde te ordena que o não queiras. 
Ontem pensei em ti de forma demorada, permiti-me a extravagância, afinal era segunda-feira e já sabes o quão mal lido com essas. Lembro-me de ti ainda demasiadas vezes; dou contigo em olhares que sei não serem o teu. Não, não me deixo enganar, mas há dias em que a falta que me fazes me ludibria a razão e não há outro tema que eu consiga reter. Não estás mais longe do que sempre estiveste, mas curiosamente a distância parece-me absurdamente maior. Às vezes penso em apanhar um elevador e subir ao céu da minha cabeça – onde vives mais tempo do que poderás imaginar. Queria colher-te como às amoras, num fim de tarde preguiçoso. Mas depois lembro-me que partir foi uma escolha tua e faço um esforço para não te repreender. Obrigo-me, isso sim, a aprender de novo que as vontades só existem com a liberdade e que isso não é vaidade. Acabo a repreender-me a mim própria por ter acreditado em tudo o que me disseste, quando era claro nos teus gestos que não falavas português. Há muito que tinhas decidido dar a volta ao mundo em dias que virão e que não queres sequer precisar. Porque não sabes ou não precisas de saber. 
Se pensar bem acho que sempre soube dessa tua esquizofrenia sentimental que te baralhou o esquema desde muito cedo e te abandonou ao destino numa linha de comboio que para além de cruzar o país te separou da fantasiosa realidade que construías como forma de te salvar dos pesadelos. Sobreviveste como pudeste, não te recrimino. Só tenho pena de te ter apanhado numa estação tão tardia, algo que me impediu de, na tua sobriedade, te mostrar o tanto que poderias querer ver com essa curiosidade interessada que sempre me cativou o orgulho. Sabes, nem sei bem se fui eu que me atrasei ou tu quem, com essa ânsia desmedida, acabou por se atrapalhar e enrolar em planos pouco traçados. 
Na minha cabeça és feliz, alimentas-te daqueles teus tímidos sorrisos que apenas permites que se vejam de quando em vez e que se revestem, por isso, de uma singularidade congénita. Vives numa simplicidade aparente que tenta equilibrar o desconsolo da complexidade inerente a essa mente que, não raro, podes jurar que nasceu fora de época. Sei que dias há em que te sentes deslocado. E eu desloco-me contigo nessas viagens tempestivas em que embarcas. Ficar-te-á sempre na boca esse amargo dos voos altos que adias com a convicta certeza do teu direito a fazê-los. No fundo sentes que os mereceste, tamanha a dor de crescimento pela qual já passaste. Devias saber, e digo-to eu, que me orgulho imensamente do caminho que trilhaste, prova de que uma pessoa se faz se não tiver medo de falhar. Tens uma cultura todo o terreno que me sabe demasiado doce por não conseguir esquecer que a salvaste de uma pérfida educação que te ficou a dever juros. Só tenho pena que algures por aí, numa dessas estradas secundárias onde se anda sem pressa, tenhas deixado cair o coração e não tenhas sentido necessidade de parar e olhar para trás. Sei que facilmente o terias apanhado. 
Na minha cabeça és feliz, mesmo com esse buraco que me deixas alimentar com o meu sentir.
Tento tentado não pensar em ti, sei que sabes que não tenho conseguido, mas a verdade é que o vento vai mudar de direcção.
Um beijo dos nossos.



* Nono.
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