Entrei na terceira estação. Corria o ano de 1992. Depois de alguns soluços secos, o comboio começou a andar. Vagão número 6, lugar 35 D – umas cadeiras verdes escuro, corroídas pelo sol, pelo tempo, pelo uso. Tu estavas sentado à janela, lembro-me como se fosse hoje. Vestias umas calças de ganga roçadas e uma t-shirt azul escuro. Calçavas uns ténis que contavam histórias – ou podiam contar, assim o quisessem. Quando me sentei, com alguma agitação, levantaste os olhos do livro que estavas a ler – Nietzsche, Assim Falou Zaratustra, uma edição antiga, páginas amareladas, roídas nos cantos, daquelas que apetece virar vezes sem conta – e esboçaste um sorriso, leve, quase imperceptível, apenas para logo te dedicares de novo à tua voraz leitura. De poucas conversas, decidi fazer o mesmo. Ao fim de quarenta minutos, enfadada, precisei de me espreguiçar – a verdade é que naquela altura não tinha ainda muitas maneiras. É certo que disfarcei, tentando não te incomodar. Mas tu, apesar de distraído – ou talvez estivesses apenas a precisar de uma pausa – pousaste o livro em cima das pernas que levavas cruzadas, e falaste. Não me consigo lembrar do que disseste, mas sei que a tua voz soou forte, clara e franca. O tom era mais grave do que agudo, e sei que me espantei com a firmeza que a trespassava; que me trespassou. Lembro-me de me obrigar a responder qualquer coisa, irreflectida, que foi tudo em modo rápido. Os livros acabaram esquecidos nas duas horas que nos separaram do nosso destino. Foi demasiado fácil desenrolar palavras de duas línguas tão contidas no tempo. Lá fora as paisagens passavam em fast forward, como num filme, e tudo parecia riscado, uma espécie de resultado de um electrocardiograma em modo contínuo; uma mancha de mundo que nos repelia o olhar. E quando o comboio finalmente parou, ficámos para trás, muito depois de toda a gente à nossa volta ter saído, malas aviadas, cadeiras agora vazias. No ar apenas a lembrança do calor humano, resquício de vidas que antes se amontoavam com o intento de alcançar um lugar comum. E nós ali, simplesmente parados no espaço, ainda que o tempo continuasse a correr em carris mais perpendiculares que os nossos, que andávamos sempre em curvas talvez demasiado apertadas para o caminho.
Quando fomos embora não olhámos para trás. Acho que não estávamos preparados, e queríamos estar preparados; queremos sempre estar preparados, ainda que não saibamos para o quê.
Hoje a serenidade esgotou, perdi-me nos meandros da minha placidez e hesitei, fraquejei, perdi o rumo que tinha como certo e olhei para trás. E, estarrecida, vejo-te ainda aí, de olhos postos em mim.
* Gicas / Diogo.
** Edição fotografia: Paulo.
* Gicas / Diogo.
** Edição fotografia: Paulo.