Num ano.


Dizem, corriqueiros, que o tempo voa, e eu, à toa, quase com 30, mas a sentir 20, acredito.
Um ano passou desde a última vez em que te vi. Com os olhos, digo, porque sei que sabes que sei que se vê com o coração. E aí, sem ponta deste astigmatismo com que diariamente me visto.
A altivez de outrora, esbatida por um tímido mas deliciosamente genuíno sorriso.
Um ano. E, no entanto, parece que foi ontem.
E o amor desse último olhar, facilmente poderia ser confundido com o do primeiro, naquele dia em que pequena, me recebeste nos braços, para ganhar, para sempre, uma outra espécie de filha.
Lembro-me de te ter chamado Avó, e de nos teus olhos doces ter ouvido neta.
Um ano. Inteirinho. Com 12 breves meses e lentos e incontáveis segundos.
Um ano de inquietas e tristes lágrimas que o tempo, cansado, foi substituindo por uma serena mas dorida saudade.
Pesa tanto a ausência presente do teu eu! Logo tu, que tinhas esse dom da omnipresença familiar, a única capaz de todos juntar.
E nós, que te sabíamos estrela, deixávamo-nos guiar pela tua confortável e luminosa presença que nos fazia acreditar que tudo tinha solução.
Um ano. Pesarosa, rainha do saudosismo, reflicto na quantidade de coisas que latejam num ano.
Num ano pintamos 4 estações inteiras e emolduramos a que mais nos toca com a resistentemente fina pele do coração. Se fechar os olhos, sinto o cheiro que povoa os fins de tarde no Verão…oiço o lamento das secas folhas que no Outono esgotadas tombam …sinto na ponta dos dedos a luminosidade de que se salpica a Primavera…e sei de cor a que sabem as confortáveis tarde de domingo quando uiva o Inverno.
Num ano respiramos emoções que infantilmente contamos pelos dedos, vezes sem conta, e decoramos em cartões flash de memória que sabemos guardar para o tal de sempre. Quero guardar todas, sem distinguir, mas tamanha imensidão ocupa demasiadamente rápido o meu espaço livre da memória. Até nisto a natureza é genial. Presumo que seja uma selecção natural de tudo quanto verdadeiramente importa. A verdade é que para isso há sempre espaço.
Num ano fazemos o melhor que sabemos e podemos para construir noites e dias que dêem algum sentido ao que os Homens gostam de chamar semanas. Tecemos minutos com frágeis segundos que se equilibram na corda bamba das nossas emoções.
Num ano usamos sem cerimónia a pele que nos cobre o sentir, para que suavemente nos toque o conforto da maturidade. E cada ruga que se forma é, para nós, o merecido prémio por um valente, e esperamos merecido, respirar.
Num ano vemos árvores destemidas a crescer, sem medo do nada que se vê no alto, e franzinas mas esplendorosas flores a sobreviver à intempérie diária que nos varre por vezes a racionalidade.
Num ano e numa ode à magia nascem bocados de nós a que chamamos crianças, porque nos fazem acreditar na eternidade. Apesar da inevitabilidade de perdermos o rasto aos seus gestos, triunfa a também inevitabilidade de nos revermos sempre nos seus açucarados olhos. Aqueles que nos prendem ainda antes de se abrirem.
Num ano assistimos ao bailado das ondas que passeiam os infinitos grãos de areia que teimosos se acomodam ao vento. Vemos o tempo passar, sem nunca realmente acreditar. O hoje parece-nos ontem, e o amanhã, acreditamos sempre certo. Esperançosos, olhamos o espelho, e, indiferentes a tudo, vemos a mesma pessoa que é, sem que, contudo, possa realmente ser.
Num ano cresço e interiorizo, cada vez mais, que tudo muda. Neste rol desenfreado da mudança, só a essência é a mesma. E, afinal, é ela o essencial. É na essência que te procuro os passos e te sinto a constante presença. Por saber a mesma, e só por isso, permito-me fechar os olhos e lembrar tudo o que foi.
E, em silêncio, constato que um ano dessa convenção humana a que chamam calendário é infinitamente menos do que tudo aquilo que verdadeiramente vivemos, e, ironicamente, infinitamente mais do que seria razoável para a saudade que julgamos poder suportar.
Um dia de vida, um ano de saudades.


Fazes-nos falta Avó.


Soundtrack: Frank Sinatra - My way.
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