Outono.



Querido Avô, 

Ando às voltas com as palavras, sem lhes reconhecer os cantos, o feitio; sem conseguir explicar porque não me saem fluidas da ponta dos dedos sem sequer nisso pensar, como se de repente fizesse cerimónia. Penso que talvez a idade me tenha traído a serenidade da ingenuidade, e a verdade é que esta consciência do efémero dá cabo de mim. Custa-me pensar nos meus que perdi; mais que muito, mais que tudo. Custa-me sentir-vos a falta e asfixio com a sensação de interrupção abrupta da vossa vida como ela era. Sofro por saber que há coisas que já não viram, já não conheceram, já não ficaram a saber. Sofro por saber que há coisas que não consegui concretizar a tempo, não consegui mostrar a tempo, não consegui dizer a tempo. Sinto-me perdida neste espaço temporal tão dinâmico que se assemelha a um aeroporto com aquele burburinho constante e com o para mim pesado incómodo que antecede as partidas. 

Penso que queria escrever palavras bonitas, pintadas de cor-de-rosa, e mornas o suficiente para me aquecer o coração. Mas depois olho pela janela e percebo que o tempo me acompanha o espírito e penso na ironia metafórica das estações que nos acompanham os dias. E agora é Outono, como se de alguma forma o mundo te sentisse o cair, suave como o das folhas que começam a pintar as ruas. Agora é Outono, como se isso pudesse explicar o facto de nos teres deixado naquele dia - faz hoje um ano - em que te vestias de cor-de-rosa, com uma camisola tão suave - cashmere – que só tinha igual na tua pele. Falaste comigo e sorriste, mais do que uma vez. Perguntaste-me pelo Direito, pelo trabalho – oh! adoravas que te tivesse seguido os passos – e depois pelo Pedro, que me sabias feliz, e eu expliquei-te, com carinho, que ele estava lá fora, mas que agora não podia entrar. Fizeste uma graçola com a enfermeira, e fingiste que não te fazia espécie estar ali sentado. E eu fingi contigo, como se fosse só mais uma rotina chata, e a acreditar que sim. 
Deixei-te tranquila, com um leve sopro de apreensão pelo ritmo acelerado com que cantava o teu coração. Digo a mim mesma que não podia saber que não mais te veria a sorrir e tento esquecer aquele momento em que o telefone tocou e do outro lado me saudou uma voz chorosa o suficiente para eu o ter percebido. Senti o chão a fugir-me dos pés e o ar a deixar de me rasgar os pulmões. A alma dói, que ninguém diga o contrário. Perder os nossos é como perdermos um bocadinho de nós. Como se nos fossem recortando a alma e o coração para chegar para todos. E como todos nos dão, nos enchem, nos preenchem; todos nos tiram, nos faltam. E que ninguém se engane, que a dor não passa. A ausência é tão presente como a saudade e ambas nos acompanham até ao fim dos dias. E isso dói. 

Estamos no Outono e continuo a sentir-te a falta. Sempre gostaste do Outono, das castanhas assadas pela Lili e mais tarde pela Fina e da jeropiga guardada no armário da copa e oferecida à mesa em pequenos copos de vidro. Gostavas das nozes e avelãs que nos ensinavas a partir com um sorriso rasgado e a bruxa de madeira na mão. Era usualmente nessas alturas que ias ao teu contador de segredos buscar uns óculos de plástico com um nariz e um bigode que me faziam tremer de medo. Gostavas dos passeios pela Serra de Sintra, pintada pelas reconfortantes cores outonais, em que nos contavas o que podias sobre as casinhas das fadas e dos anões que íamos encontrando pelo caminho, um momento só nosso, mesmo quando já sabíamos que não passavam de contadores de eletricidade ou água. Gostavas do burburinho que ia chegando com o Natal, esse que a Avó preparava como ninguém. Gostavas de te aconchegar na cadeira do teu escritório, com uma manta pelas pernas, a ouvir a chuva lá fora a ecoar no jardim, enquanto lias a Time ou um qualquer livro de história que te viesse parar às mãos – tinhas sempre tanto saber para partilhar. Gostavas de escrevinhar nos envelopes das cartas que recebias, com a tua letra inconfundível, coisa que também já faço. E, melhor que tudo, gostavas de mim, que chegava a tua casa ao ritmo de cada uma das estações, ora mais animada, ora mais vagarosa. Sabia que enchia a tua sala quando ali entrava, e tu enchias-me o coração com o teu sorriso que de imediato e de forma gratuita se abria espontaneamente e com a magia que só a genuinidade veste. 

Podia dizer que não dei por isso, que passei pelas estações sem o sentir, mas seria mentira. Senti a tua falta todos os dias, desde a última vez em que te vi. Espero que me perdoes por não saber que aquele até já seria tão longo. Sinto a tua falta desde então e, uma vez mais, tento repor aos dias um nível de normalidade aceitável. Tento, uma vez mais, aceitar com alguma serenidade as ausências de que sou feita e não deixar que isso me despedace mais do que aqueles minutos antes de adormecer. É tão difícil, doloroso, tenho de respirar fundo e chamar o melhor de mim, mas Avô, fica descansado que tenho ajuda e já não estou sozinha. Não obstante o tanto que me tirou, a vida foi generosa comigo e vai tentando repor-me o coração. E os dias são melhores e mais fáceis. 

Sim, para mim far-se-á sempre Outono quando me lembrar de ti, mas Avô, nunca te esqueças o quanto eu gosto do Outono! 

Adoro-te. 

Sempre tua, 

Sofia
My photo
areservamental@gmail.com